domingo, 5 de agosto de 2012

POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS


Gert Schinke*

Se abordarmos as políticas municipais sob o ponto de vista dos “ecossocialistas”, evidentemente estaremos olhando elas de um ponto de vista muito particular, de partida absolutamente dissonante com aquelas alinhadas com a visão desenvolvimentista do capitalismo brasileiro que, sob a batuta do PT, enveredou nos últimos anos para um viés ainda mais acentuado na rapina dos recursos naturais, comparada às duas décadas anteriores da era lulo-petista. Ainda assim, embora em campo bem definido, o olhar ecossocialista apresenta uma miríade de alternativas que os inúmeros cenários nos apresentam no cotidiano da cidade, do bairro, da vila, da comunidade local onde as pessoas vivem a maior parte de suas vidas. Não se trata aqui, pois, de apresentar um receituário de políticas públicas, mas sim, de enumerar algumas observações tiradas da nossa militância junto às comunidades nas quais convivo, à luz do olhar ecossocialista, sempre sujeito, por pressuposto, às adaptações necessárias da realidade que se apresenta em cada local.

De outra parte, uma coisa é teoria, especialmente aquela gerada na academia com propósitos meramente acadêmicos. Outra coisa é prática, proposta concreta, voltada à realidade fática, material, que exige criação, adaptação da teoria. Portanto, menos discurso, mais proposta. E, em nosso caso, para não parecer um “ET”, proposta viável, inteligível para o povo leigo em técnicas, em legislações, avesso a “doutores” e iluminados de todo tipo, em exercício de descarrego emocional frente ao povo simples.

A CLIENTELA POLÍTICA
O “clientelismo”, chaga política centenária forjada pela estrutura de dominação social e política da burguesia e seus aliados, é o caminho tradicional para o encaminhamento da maior parte das políticas públicas no âmbito local, do bairro, da cidade, da região. Na maioria dos casos ele é operado através de um intermediário, que suga o poder de mobilização do “cliente”, subtraindo-lhe cidadania, poder de reivindicação direta diante das autoridades nas três esferas do poder, e, o que é pior, ao mesmo tempo esvazia a organização coletiva em torno das entidades locais de pressão, as associações comunitárias, conselhos, entidades ecológicas e tantas outras.

Não por acaso, na era lulo-petista, as entidades locais de todos os movimentos sociais foram esvaziadas no seu poder de pressão política, fenômeno que caminha de mãos dadas com as políticas públicas emanadas pelo governo federal, quando implementa uma série de políticas tipicamente clientelistas – as “bolsas” de todo tipo, objetivando ampliar seu eleitorado com vistas a perpetuar-se no poder ad infinitum. Essa corrente é muito difícil de quebrar, especialmente se nos ativermos à tradição da política nacional, totalmente impregnada do mais arcaico clientelismo político. O lulo-petismo, antes baluarte do protesto, tutor da reserva crítica aos governos burgueses e ao Estado, hoje se alimenta daquilo que antes combatia e pratica uma forma de governança que não deixa nada a desejar aos anteriores.

Uma característica das mais perversas nesse cenário, é o ritual de bajulação e puxa-saquismo em relação às autoridades que o clientelismo só vem acentuar, exacerbando ainda mais a hipocrisia que ronda o “fazer política”, quando cria um mundo de ilusões em torno de reivindicações que jamais são cumpridas, e cujo resultado mais palpável é o total descrédito da POLÍTICA, que sempre deveria ser escrita e praticada com letras maiúsculas. Ao seguirmos essa linha de raciocínio enveredaremos pela filosofia, pano de fundo da boa política e que sempre está presente, até mesmo nas relações mais rastaqüeras que se apresentam no dia a dia da vida pessoal e da luta de classes, ainda que às vezes de forma meio difusa.

O PONTO DE PARTIDA
O olhar ecossocialista funde dois caminhos que jamais deveriam estar separados – a luta pelo socialismo democrático (ainda necessário o adjetivo) e o ecologismo, visão de mundo particular que parte de premissas bem definidas: recursos naturais finitos no planeta; o convívio e respeito a todas as demais espécies vivas no mesmo; o respeito à forma de funcionamento da ecosfera em toda a sua plenitude; a conservação da energia, dentre outros. Esse amalgamento conspira frontalmente com o modo de reprodução do capital que exige constante crescimento e consumo, daí o porque das propostas de “decrescimento econômico”, de limitações compulsórias de consumo, entre outras coisas, que pregamos em nossas plataformas políticas gerais. Mas como essas “bandeiras genéricas” se traduzem em coisas miúdas, se espelham em políticas públicas que os governos podem implementar nas cidades, nos bairros, nas pequenas comunidades?

Como havia alertado, não pretendo trazer um receituário para cada setor, mobilidade, planejamento urbano, saúde, pretensão esta que humildemente deixo de lado. Uma coisa é certa: se você observar quais políticas públicas são propostas para um determinado setor, certamente você poderá analisá-lo à luz dos princípios que orientam o ecossocialismo, alguns dos quais alinhavei acima. A conclusão mais provável que você chegará é de que essas políticas não se lastreiam nesses princípios, quando não colidem frontalmente com os mesmos.

O PONTO DE CHEGADA
Vejamos o setor de mobilidade urbana, um bom exemplo diante das próximas mega-festanças – Copa e Olimpíadas. Todos os governos, indistintamente das esferas de domínio, estão patrocinando obras que supostamente melhorarão os padrões de qualidade hoje oferecidos à população. Os recursos bilionários do PAC destinados a essas obras, de enormes anéis viários, de expansão de metrôs, de trens metropolitanos, de ampliações viárias aqui e ali, têm em comum a ampliação de espaço viário especialmente para automóveis, um tanto para o transporte de massas, mas passam solenemente ao largo do cálculo energético que esses sistemas de transporte acarretarão no futuro próximo. Sob um olhar ecológico, esse critério deveria estar presente, uma vez que ignorado, implica obviamente em incremento no uso de energia. Isso, por sua vez, interessa aos setores econômicos que as produzem, inclusive nossa estatal maior - PETROBRÁS, cuja meta é crescer cada vez mais, se globalizar cada vez mais, e se transformar numa grande gigante de energia e petróleo do mundo, fazendo jus ao sexto lugar que o país hoje ocupa no ranking mundial dos PIB’s. Se todos esses bilhões fossem gastos preferencialmente em transporte de massas com equipamentos que embarcam tecnologias de ponta que economizam energia e utilizam menos recursos naturais, já teríamos um ponto de encontro com nossa proposta. Mas não é isso que acontece, e tão pouco acontecerá. O automóvel ainda governa as mentes dos governantes e da grande maioria da população, roubando espaço da bicicleta, do pedestre, da paisagem, da tranqüilidade na urbe.

Se você olhar para o que se implementa na saúde, setor totalmente vinculado ao de saneamento básico, você chagará a óbvia conclusão de que sequer “saúde” é praticada. Basta partir da informação de que cada real investido em saneamento básico poupará quatro a serem gastos inevitavelmente em saúde pública, hoje em franco declínio na qualidade do conjunto dos seus serviços. Paralelamente, o setor privado bombando como nunca. No saneamento básico, primo pobre da saúde, o quadro que se apresenta hoje no país é vergonhoso, é assustador, ainda que recebendo inovações legais, como o recente Plano Nacional de Saneamento
Básico e o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, leis que já se sabe, em grande parte ficarão no papel. Esse é um território no qual tradicionalmente a esquerda, de modo geral, pouco transita, e que alimenta imenso preconceito, talvez por imaginar que trabalhar em torno de políticas públicas nessa área, se distancia da clássica luta de classes aprendida no cânone marxista. Ledo engano e erro crasso.

As obras voltadas a saneamento básico, assim como na mobilidade, injetarão bilhões do PAC em enormes complexos de coleta e tratamento de esgotos nas grandes cidades, obras estas que passam totalmente ao largo dos princípios ecológicos que, acima de tudo, pregam respeito às bacias hidrográficas, como, inclusive, manda a lei. Como inúmeros exemplos atestam país afora, essas obras partem de um conceito tecnocrático arcaico e descartado em muitos lugares no mundo: o modelo centralizado de tratamento de esgotos, na contramão do que preconiza o sistema descentralizado de tratamento de esgotos, calcado nos princípios ecológicos da conservação de energia; da preservação das fontes de água e do seu ciclo natural; da reinserção local dos efluentes gerados no tratamento; da utilização de mais mão-de-obra ao invés de mega-equipamentos. A quem interessa grandes obras que dispensam mão-de-obra na posterior operação?

Nesse setor vale chamar atenção para o trabalho feito por um pequeno grupo de militantes ecologistas em Florianópolis, através do MOSAL – Movimento Saneamento Alternativo, que aliou teoria e prática de uma forma totalmente inédita ao organizar oficinas populares em torno de esgotamento sanitário e resíduos sólidos. Provou-se, através destas oficinas, que o leigo, cidadão que sequer imagina como é uma rede de esgoto, pode perfeitamente se encontrar com a sua realidade, formular a melhor política de saneamento básico em seu bairro ou cidade com base em princípios ecológicos, e, o que é ainda mais positivo, libertando-se dos grilhões acadêmicos e tecnocráticos dos burocratas de plantão que ditam as regras nesse setor, em perfeita sintonia com os interesses dos grupos empreiteiros, como mais uma vez se evidencia na CPMI que vasculha as contas da Delta.


Em meio a todas essas discussões, aflora a questão do planejamento urbano, setor este que no Brasil apresenta características muito peculiares, ou seja, o déficit de planejamento urbano, aqui entendido como um conceito que combina participação popular e gestão integrada de todos os vetores que o compreendem. O Estatuto da Cidade trouxe uma melhora no padrão da discussão do ordenamento urbano e da transparência das ações e políticas públicas nessa área, mas há muito que nele melhorar, como advogo desde quando surgiu. Hoje o EC já está praticamente assimilado ao modus operandi da dominação política das elites locais, terreno no qual elas se mostram extremamente eficientes – como aplicar a lei sem aplicá-la na prática, perpetuando o jogo de faz-de-conta e, como de resto, esvaziando o respeito pelas legislações hoje existentes.

Os Planos Diretores, instrumentos que dialogam com todos os setores da vida de uma cidade, oferecem uma oportunidade única para os ecossocialistas, pois eles colocam sobre a mesa a discussão em torno do modelo de cidade, de comunidade que se almeja no futuro, dando lugar a atual forma de organização e ocupação do solo. Assim como nos demais setores, mais uma vez nos confrontamos com o olhar tecnocrático impregnado com cheiro de capital, com o olhar preconceituoso da academia carente de contato com o povo, como o nariz torcido de certo tipo de militante de esquerda que não quer dialogar com sua comunidade, imaginando perder tempo com uma discussão inútil de planejamento urbano, distante e inócua na luta de classes, em seu entender. É na disputa pelo território, na apropriação do estoque do metro quadrado de terreno que o capital se reproduz tão bem quanto na apropriação da mais valia, já que esta não pode ser apropriada em muitos ambientes nos quais a relação capital-trabalho não se apresenta como numa fábrica. A apropriação de espaços urbanos, dos recursos naturais presente e próximos da urbe, através dos meios à disposição da especulação imobiliária, são um dos fenômenos do capitalismo atual que, assim como o capital financeiro, mais sustentam sua reprodução no mundo de hoje. E como ele, todo o sistema de dominação presente nas regiões onde esse fenômeno tem maior peso, notadamente no litoral brasileiro e nos clusters interioranos reservados à burguesia.

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